2.11.04

Toda A Mente É Danada (1)

Não me sentia bem. Disse-o alto, para Phoebe ouvir:
- Não me sinto bem!
- Não tenho interesse nenhum no teu estado. Se não me tivesses abandonado ontem à noite e trocado por várias garrafas de gin e pela companhia dos teus amigos, talvez não te sentisses tão mal.
- Não foi gin...
Ainda estava aborrecida. Levantei-me a custo do sofá onde estivera enfiado (anos 50 do século XX, acho eu), e dirigi-me à casa de banho. Não me sentia nada bem.

Os dourados das torneiras do lavatório não tinham sido poupados pela enésima descarga do meu estômago revoltado. Phoebe zangar-se-ia mais quando visse a casa de banho assim. Nunca mais beberia...? O que foi que bebera, afinal? Não tinha sido gin, mas não me recordava qual a bebida que me colocara naquele estado.
Maldita ressaca.
- Tinha de ser! Não podia faltar a inundação de vomitado na minha casa de banho!
- Acho que é minha também. Afinal foi tudo pago... pelos dois. – o meu estômago pregou-me a sua última partida, bem em cima dos sapatos de Phoebe.
Não é agradável ser esbofeteado depois de se ter estado a vomitar, mas ela não me deu tempo para reagir. Voltou-me as costas e saiu da casa de banho, deixando marcas húmidas na alcatifa da sala. O que foi que bebera, afinal?


Há lugares improváveis. Existem coisas impossíveis. Depois vem a realidade que desmente tudo isto.
O nosso mundo não fazia qualquer sentido, mas existia. Era uma colagem improvável de épocas antagónicas, tudo ligado pelos ténues fios de seda da insanidade. Nada precisava de ter nexo, bastava que existisse ou fosse imaginado pela mente de alguém para logo passar a fazer parte da realidade. Não estou a dizer que não sou louco: também tenho um Plymouth de 1956, um corte de cabelo de 2011 e preconceitos do longínquo ano de 1833. Isto além da minha casa, réplica de uma construção de um qualquer arquitecto famoso do início do século XX, entalada entre uma mansão de estilo Tudor e uma típica casa de montanha dos Alpes suíços. Não faz sentido, pois não?
Sempre que me embebedo fico com tendência para filosofar. Fui procurar Phoebe depois de me lavar, usando apenas um roupão de seda com motivos estranhamente estúpidos.
Estava no quarto, estirada na cama do século XVIII, fingindo que chorava. Phoebe nunca chorava.
- Nunca mais bebo nada, nem sequer água. Hás-de ver-me definhar, Phoebe, e nada do que então tentares me demoverá. Mas podes salvar-me do meu trágico destino agora, se me deres um beijo.
Phoebe nunca fazia nada. Só fingia.

Greenaway olhou novamente para o espelho retrovisor. Sim, era mesmo uma pequena mancha de ferrugem! Teria de levar o carro ao restaurador o quanto antes. Custara-lhe caro aquele modelo, não podia deixar que a ferrugem o tomasse de assalto.
As manhãs eram sempre dolorosas. Um dia, quando uma curva surgisse, ele estaria de olhos fechados, no país dos sonhos, e essa curva seria a última.
Ser polícia num mundo de loucos tinha vantagens e desvantagens. O principal obstáculo era a lei: mudava ao sabor da moda e, se três meses antes, durante uma semana, vigorara a lei islâmica do fim do século XX (felizmente estava de férias nessa altura), e no mês anterior existira um avançado e liberal sistema de leis da antiga colónia de Kihyl, o normal era a miscigenação de várias épocas e sistemas, numa barafunda tal que só com o auxílio do sistema central de aplicação da justiça se conseguia aplicar a lei.
Quando era garoto sempre gostara de subir às árvores. Partira vários ossos nessas brincadeiras mas voltara sempre a tentar. Àquela árvore que surgira à minha frente não me apetecia trepar, principalmente dentro do meu automóvel.
O som da chapa rasgada pela árvore e a ausência de impacto fez-me perceber duas coisas naqueles ténues instantes: tinha escapado a um choque frontal com uma árvore de respeito e o meu carro sofrera bastante com tudo aquilo. Após um slalom atrapalhado pela ribanceira abaixo o automóvel estacou, mergulhado numa nuvem de poeira. Tinha de passar a deitar-me mais cedo.

Sentiu a ausência e abriu os olhos. Phoebe já não estava ao seu lado. Levantou-se a custo e olhou para o relógio suíço na parede: era tarde. Ela entrou nesse momento, nua, ainda com gotas a pingarem da pele dourada.
- Sabes de uma coisa engraçada...
"-... esta é do século XXI, ano de 2036, e subiu ao Top10 mundial no dia dez de Agosto desse ano. "Take a little" pelos..."
Olhou para a mão ensanguentada e percebeu que fizera um corte na testa. Mão ensanguentada!? Que raio...
Viu o corte no espelho interior: nada importante, o automóvel preocupava-o mais. Isso e o atraso. O sujeito que tinha de vigiar não estaria à sua espera. Vigiar? Mas eu não tenho de vigiar ninguém! Vi a minha mão abrir a porta e saí do carro. Olhando para cima agora, a ribanceira não lhe parecia tão imponente. Um momento! Desde quando é que tenho um anel com uma pedra amarela? Decidiu-se a subir e procurar ajuda. E fatos cinzentos com corte do fim do século XX? A meio da escalada limpou o suor da testa e do bigode. Eu não tenho bigode! Custara-lhe menos a descer...

Wilbur Teeling não ligou aos gritos de protesto do peão imprudente e continuou a acelerar pela avenida.
A cabeleira empoada descaiu-lhe novamente para o lado e tombou no chão.
- Merda de coisa! – abrandou e encostou o automóvel à berma. Custou-lhe dobrar-se para a apanhar, os seus 110 quilos não ajudavam.
Droga de acidente! Pelo menos não me magoara, embora me sentisse apertado. Levantei-me e olhei pelo pára-brisa. Onde é que estava a floresta? Ajeitou a cabeleira com cuidado e engatou novamente a primeira. Estava com fome, comera muito pouco uma hora antes. Eu não estou com fome! Parou junto a um restaurante chinês. Tinha mesmo muita fome.

Ela era muito bonita, a mulher mais bonita que eu já vira! Para mais estava nua e avançava na minha direcção. Ouvi-me dizer:
-...Não me lembro do que bebi ontem. Foi qualquer coisa nova que alguém trouxe mas não me recordo o quê! – eu ontem bebi sumo de laranja, recordo-me bem.
- Não foi sumo de laranja concerteza, foi algo bem forte para te pôr nesse estado. Serás sempre o mesmo, Elder Pramitt...
Esta dor de cabeça não é minha, raios! Eu ontem não bebi nada! Pramitt enlaçou Phoebe pela cintura e sussurrou-lhe ao ouvido: – Tu gostas de mim assim. – para dizer a verdade não percebo como ela gosta de mim, mas está a ser muito bom. Até me sinto mais leve!

Elder Pramitt não percebia porque estava novamente na cama com Phoebe.
Vincent Greenaway não se lembrava de ter subido a ribanceira.
Wilbur Teeling estava num restaurante chinês. Não percebeu como, mas a comida estava boa.